quarta-feira, 17 de março de 2010

Páscoa «um outro mundo é possível»


A Páscoa é o coração e o centro da Bíblia, do Ano Litúrgico e da vida cristã. Só a partir da Páscoa podemos compreender e celebrar os “mistérios” de Cristo: o seu nascimento, vida pública, anúncio do Reino, paixão e morte… Só a partir do Cristo Vivo da Páscoa podemos compreender e celebrar a Eucaristia, cada um dos Sacramentos, o Domingo, a criação, o trabalho, a doença e a morte… Devemos ao Concílio Vaticano II uma visão pascal do mistério de Cristo e da existência cristã. Antes dele, até há 40 anos, insistiu-se com excesso e parcialidade nos aspectos sacrificiais da vida cristã.
Foi o Concílio que fez chegar a todo o Povo de Deus uma percepção bíblica, litúrgica e existencial mais aprofundada do “Mistério Pascal”.

A partir do seu encontro com o Crucificado de São Damião, a suprema originalidade de Francisco foi seguir em tudo e sempre a vida, as opções e os sentimentos de Jesus Cristo vivo, interpelante, pascal. Gráfica é a síntese com que Tomás de Celano encerra o capítulo sobre os últimos momentos de Francisco: «Chegou, enfim, a sua hora. Realizados nele todos os mistérios de Cristo, voou ditosamente para Deus» (VIDA SEGUNDA, 217, 11).



Dimensão pascal da vida de Francisco

São Boaventura aproveita um episódio acontecido em Greccio para sublinhar esta dimensão pascal da vida do Poverello e dos seus primeiros seguidores: «Dirigiu-lhes a palavra [aos Irmãos] para lhes mostrar, segundo as Santas Escrituras, que eram os verdadeiros Hebreus, a atravessar o deserto deste mundo como peregrinos e estrangeiros; e que, por isso, deviam celebrar constantemente em pobreza de espírito a Páscoa do Senhor, isto é, a passagem deste mundo para o Pai” (LEGENDA MAIOR, VII, nº 9).

A “passagem deste mundo para o Pai” é precisamente a grande reviravolta que Francisco sofre e nos conta logo no início do seu TESTAMENTO. Após falar da sua experiência com os leprosos, diz: «E ao afastar-me deles, o que antes me parecera amargo, converteu-se para mim em doçura de alma e de corpo: e em seguida, passado um pouco de tempo, saí do mundo» (nº 3).

Por graça de Deus, Francisco saiu definitivamente do “mundo” das desigualdades e da injustiça e passou para o “mundo” do Pai, de misericórdia para com todos, especialmente com os “leprosos” de todos os tempos. Eis a sua verdadeira Páscoa! Eis o Francisco verdadeiramente pascal!


Viver a Páscoa
é tornar-se Irmão menor e servo de todos


Para este enamorado de Cristo, cada dia é uma verdadeira Quinta-Feira Santa. Na sua PRIMEIRA REGRA, Francisco faz uma ligação imediata entre o ser irmão menor e o lavar os pés – numa referência explícita a Jesus Cristo, em Quinta-Feira Santa, uma das imagens que tanto o impressionou: «Todos, indistintamente, se chamem irmãos menores. E lavem os pés uns aos outros» (cap. VI, 9). Outra ligação que ele faz é entre servir e lavar os pés: «Eu não vim para ser servido, mas para servir, diz o Senhor (Mt 20,28). Os que receberam o ofício de mandar nos outros, tanto se gloriem desse ofício, quanto se gloriariam se fossem encarregados de lavar os pés aos irmãos» (EXORTAÇÃO 4,1-2).

Assim, ser franciscano é ser irmão menor, pequenino disposto a servir os outros, lavando-lhes os pés, enxugando-lhes as lágrimas, acolhendo os seus anseios de amor e de misericórdia. Este é o frontispício do Mistério Pascal: a Quinta-Feira Santa.


Viver a Páscoa
é continuar em si a Paixão de Cristo Jesus


Para o apaixonado do Crucificado, cada dia é uma verdadeira Sexta-Feira Santa. Há uma continuidade e vivência cada vez mais exigente entre o encontro com o Cristo de São Damião e a identificação com o Crucificado do Alverne, simbolizada nas cinco chagas impressas no corpo de Francisco, dois anos antes da sua morte.

O autor das “CONSIDERAÇÕES SOBRE AS CHAGAS” (cap. III) coloca nos lábios de Francisco esta ousada súplica: «Senhor meu Jesus Cristo, rogo me concedas duas graças antes de morrer: a primeira é que eu sinta no corpo e na alma, quanto seja possível, a dor que Tu, doce Jesus, sofreste no tormento da tua acerba Paixão; a segunda é que eu sinta no meu coração, quanto possível, aquele excessivo amor em que Tu, Filho de Deus, ardias quando sofreste voluntariamente tantos tormentos por nós, pecadores.» Uma graça de dor e uma graça de amor…

Em plena Festa da Exaltação da Santa Cruz, Francisco tem a visão do Serafim com seis asas resplandecentes como fogo… Diz São Boaventura: «A visão, entretanto, desaparecera, deixando-lhe o coração a arder em chama viva – e deixando-lhe também o corpo marcado em chagas vivas. Foi assim que um amor autêntico transformou o amigo na imagem do amado» (LEGENDA MAIOR, XIII, 3.5).

Contemplar Francisco é contemplar Cristo – Aquele Cristo que se “apaixonou” por nós, amando-nos até à loucura da Cruz, para que também nos amemos uns aos outros até à loucura da cruz e da morte.

É esta “Paixão” que Francisco canta no seu famoso Ofício da Paixão do Senhor. Uma “Paixão” que tem o seu clímax no Tríduo Pascal (I Parte), o centro no Tempo Pascal (II Parte) e o prolongamento nos Domingos e Festas principais (III Parte), incluindo o Advento, Natal e Epifania.

Assim, cada dia é uma nova oportunidade para agradecermos a loucura do amor de Deus por nós. Cada dia traz-nos a possibilidade de vivermos a “compaixão” por todos os crucificados e escorraçados pela sociedade, atraindo-os ao amor, única força que nos torna verdadeiramente livres, fraternos e felizes.


Viver a Páscoa
é sonhar cada manhã como nova Ressurreição


Para Francisco de Assis, chamado “Cristo redivivo”, cada dia é um Dia de Páscoa:

● a Festa de Cristo Ressuscitado,
● a Festa da Criação libertada da escravidão,
● a Festa da Humanidade redimida na Morte de Cristo,
● a Festa da Vida a jorrar em abundância do Lado aberto de Cristo,
● a Festa da Luz vencedora de todas as trevas,
● a Festa do Amor triunfando sobre todos os ódios…

Para Francisco e os seus seguidores, a Páscoa é o Tempo do Sonho e da Utopia: Cristo ressuscitou! Um outro Mundo é possível!

Frei Acílio Mendes, ofmcap


In Folheto "Paz e Bem", Março 2010

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